– Você não tocou na comida, Lia…
– Hum…? Ah, sim. A comida. É que eu estou meio entalada… – Levo as mãos à garganta em sinal de sufoco, mas na verdade, estou aliviada por não ter que engolir nada.
– E o que você quer beber, então? Aquele vinho de sempre, pode ser?
– Não, não é is… – Pedro me interrompe chamando a atenção do garçom que está servindo a mesa ao lado. Bem típico dele.
– Garçom, por favor, aquele pinot noir.
– O francês, senhor?
– É, esse mesmo. Está bom pra você, Lia?
– Bom, uma taça de vinho não me cairia mal, afinal. – Me rendo cruzando os braços sobre o peito. Pensando bem, uma garrafa de vinho não me cairia mal mesmo.
– Ótimo! Hoje é um dia especial, Lia, quero que seja tudo perfeito. – ele acaricia minhas bochechas e toca a ponta do meu nariz com o dedo.
– Pedro, eu…quanto a isso…bem… – finjo um pigarro pra ganhar tempo e pensar como terminar essa frase. Aliás, como sequer começa-la. – Eu sei o quanto você se esforça pra fazer tudo perfeito…
– Eu faria qualquer coisa por você, meu amor. – e me interrompe mais uma vez.
– Então, eu sei. Mas tem algumas coisas, sabe? Algumas coisas acontecendo que eu… Eu não sei explicar direito o que são – Mentira, eu sei, sim. Sei de cor e salteado. Sei melhor do que a data do meu nascimento que falsifico todo ano.
– Aqui está, senhor. – Salva pelo álcool, como sempre. Espero Pedro degustar e o garçom terminar de nos servir. Aproveito a pausa pra beliscar o beef carpaccio que não havia tocado ainda.
– Sempre sensacional, Alfredo. Hoje é uma noite especial! E esse vinho está perfeito. – Estou começando a me incomodar com essa ênfase em especial dele.
– Não é tão especial assim, Pedro… – Quem sabe baixando um pouco a bola, não fique mais fácil? – Inclusive, disseram que estaria quente e está chovendo horrores lá fora, e eu não trouxe nenhum casaco.
– Lia, o que tem de especial hoje não é o tempo. Somos eu e você, meu amor. Nossos três anos. – Ele junta minhas mãos as suas em um gesto que, na certa, viu em algum filme do Adam Sandler – Isso que é especial.
– Hum-rum. – Livro minhas mãos por impulso, ou repúdio, sei lá, e agarro a taça. Dou um gole curto no vinho e, logo em seguida, um segundo mais longo. Sinto-o descer pela minha garganta como um raio. Um raio de luz e esperança. Deus, que diferença faz um vinho numa noite como essa!
– À propósito, seu projeto foi aceito? Como foi a reunião?
– Foi sim. – respiro fundo e decido que não vou mais adiar isso. – Pedro, precisamos conversar.
– Mas nós já estamos conversando, bobinha. Eu me interesso por tudo da sua vida. Quero saber todos os detalhes de como foi o seu dia. – Ele serve-nos com mais uma taça e fixa seus olhos aos meus. – Que cara é essa, Lia? Você está se sentindo bem?
– Eu… eu… – começo a hiperventilar, sinto meu rosto corando e uma pressão me invade a cabeça. Meu Deus, como ele me sufoca!
– Lia, pelo amor de deus, fale comigo! O que você está sentindo?
– Eu… eu estou sufocada, Pedro! Pare!
– Com o quê? Se engasgou? Vou pedir ajuda. – ele se levanta em um pulo e começa a acenar freneticamente para o garçom que agora está ocupadíssimo se equilibrando com tuas bandejas nas mãos.
– Sente-se agora, Pedro Jorge! Eu não estou passando mal, foi apenas uma vertigem. – Me forço a ficar calma. Pelo menos, tirei o foco da sua declaração. Nada que mais uma taça de vinho não resolva. Ou tente.
– Sério? Sério mesmo? Acho melhor irmos embora. Não quero estragar tudo pra hoje.
– Hã? Estragar o quê? O que tem pra ser estragado? Sente-se agora, Pedro. Estou avisando. – Uso minha voz mais autoritária e ainda o ameaço com uma colher de prata, daquelas pesadas. É bom ele não testar minha paciência.
– Tudo bem, meu amor. Só queria ter certeza de que você está bem. Não fique chateada, faço de tudo pra cuidar de você. Porque você é…
– EU SEI! – grito sem sequer me dar conta e todos os olhares ao nosso redor nos fuzilam.
– Eu sei… – repito quase em um sussurro. – e é sobre isso que precisamos conversar.
– Ah, sim, estou entendendo. – Pedro se senta com um olhar malicioso e um sorriso de canto de boca que não me agrada nem um pouco. – Eu também quero conversar sobre isso com você.
– Sério?! – não escondo a surpresa, e levo alguns segundos pra me recompor. – Quero dizer… sério?
– Sim. – sua voz adquire um tom sério, como quando o via defender seus clientes no tribunal. Ele está preparando-se para um combate. – Na verdade, já faz um tempo que venho pensando sobre isso. Sobre como está nosso relacionamento.
– Eu também… – sinto um alivio percorrer meu corpo. Não acredito que estamos finalmente falando disso!
– Então, estamos juntos há três anos, e não é pouco tempo. E tantas coisas já nos aconteceram, já passamos por tanto juntos. Você me ajudou muito no firma, aliás, se não fosse por você, eu não teria chegado tão longe e eu fico pensando o quão sortudo eu sou por tê-la…– Ele endireita a gola da blusa e apoia os cotovelos na mesa, aproximando-se de mim. – E em como nos damos bem, como você me faz feliz…
– Espera, do que você está… você não está pensando…? Pedro, o que está fazendo de joelhos?! – Ai meu deus, meu coração se contorceu. Vou realmente passar mal agora!
– Eu ia esperar o momento perfeito, mas não posso aguentar. Não consigo. Só de olhar em seus olhos sei que tudo entre nós é perfeito, Lia. Eu sei, eu sinto.
– Não. Faça. Isso. – as palavras saem por entre os dentes. Começo a olhar em volta, apreensiva que tenham notado esse suposto gesto de romantismo clichê. Me jogo ao chão e fico de joelhos igual a ele em sua frente.
– Mas… O que você está fazendo?
– Evitando que você passe por isso. Você não precisa fazer isso. Não Faça. Isso. – repito pausadamente.
– Eu já estou fazendo, Lia. Nada vai me impedir! Nem mesmo sua timidez em público. – ele abre os braços e aumenta a voz. Que exibicionista! Sempre foi desses. Imagine se fosse bonito.
– Pedro, estou falando sério. Vamos conversar direito. Levante-se. – Deus, simplesmente não posso acreditar. Não. Posso. Acreditar. Por que ele continua ajoelhado?
– Lia… – ele enfia a mão no bolso e meu coração gela quase saindo pela boca. Sinto meu rosto corar novamente e começo a hiperventilar aflita. – Há muito tempo, eu gostaria de…
– Pare! Pare com isso imediatamente! – ouço-me dizer aos berros. Eu tinha que parar com aquilo. Eu não podia deixar que o pobre do Pedro se humilhasse a esse ponto. – Olha, eu sei! Eu sei, tá? Sei de tudo que você sente por mim, sei o que você planejou e eu… bom, eu agradeço muito.
– Agradece? Como assim?!
– Acontece que eu não posso simplesmente dizer sim, Pedro. – coloco a mão em sua boca pra que não me interrompa mais uma vez. – Não posso. Eu gostaria muito, mas não consigo. Não quero isso pra minha vida, não quero isso pra nós. Quer dizer, eu e você e, não, nós. Quer dizer, nós, mas não juntos. Quer dizer, ah, não sei! E pare e me olhar com essa cara.
– Não, Lia! Como assim, você sabe? Do que você está falando…?
– Estou falando do seu pedido! De tudo. Da gente, desse restaurante que foi o primeiro que você me trouxe, do vinho que você sabe ser meu preferido. De tudo, Pedro.
– Como você sabe do meu pedido?! – ele senta-se novamente na cadeira devagar, acho que conformado que seu tão sonhado “sim” não vai sair hoje. Pelo menos, não de mim.
– Eu sei o que todo esse gesto – abro os braços sinalizando o restaurante, a comida, as nossas roupas e volto ao meu lugar. Tento manter a serenidade na voz pra não magoar seus sentimentos. – significa pra você. Eu te conheço. E, por isso, eu quero conversar sério com você.
– Lia, mas como você poderia adivinhar? A Mirna te contou?
– A Mirna?! Você contou pra ela? Tem mais alguém sabendo?! – Ai meu deus, tadinho! Fico com um nó na garganta imaginando a decepção das pessoas quando souber que eu disse não. Quando o Pedro voltar pra casa com o anel na mão, e o coração partido. Ele devia ter ficado de bico fechado. Imagine se nos prepararam uma festa surpresa? Deus, vai ser horrível! Preciso acabar logo com isso.
– Sinceramente, tem. Mas por que isso importa? Se você já sabe, qual a sua resposta, então? – Ele de novo segura minhas mãos com um ar apaixonado. O azul dos seus olhos é hipnotizante. Me sinto um pouco mal por ter que terminar com seus sonhos. Sinto minha certeza diminuir, principalmente, com o sorriso largo que ele me abre.
Respiro fundo, conto até três mentalmente e, enfim, digo:
– Pedro, eu não posso me casar com você. – solto o ar em seguida, relaxando por ter tirado quase uma bigorna das costas.
– O quê?! – é a vez dele gritar. Sua cara de espanto me deixa atordoada, suas sobrancelhas se erguem e sua boca se curva. Não acredito que estou fazendo-o passar por isso. Sempre imaginei que fosse ser bem mais fácil.
– Me desculpe, Pedro Me desculpe, mesmo. Eu sei o quanto você idealizou essa noite, o quanto se preocupou que fosse perfeita, mas…
– Quem.. quem falou em casamento?
– Não, Pedro, tudo bem. Você não precisa nem terminar, vamos evitar esse constrangimento. – Tadinho, se preparou todo e nem teve a chance de fazer o pedido. Mas pelo menos agora ele não vai dar vexame na frente de todo mundo.
– Não, Lia, você não está entendendo. QUEM falou em casamento? Mesmo?
– C-como assim? Não é isso?
– Não é isso, o quê? A viagem?
– Que viagem? – minha vez de arregalar os olhos de dúvida.
– Ué, a viagem que você disse que sabia. Que a Mirna ou, sei lá, alguma das tuas amigas te contou.
– Mas que droga de viagem é essa…? Esquece isso. Eu estou falando do seu pedido. – pronuncio pedido quase soletrando pra ser bem clara.
– Então… Meu pedido era sobre a viagem. Mas quem falou de casamento?
– O que? Não tem casamento?!
– N-não…
– E por que tudo isso?! – minha voz torna-se aguda e estridente. Sinto que vou explodir de vergonha, raiva, ansiedade, tudo junto.
– Pra te chamar pra viajar comigo. Eu ganhei uma viagem do pessoal da firma. Quis te fazer uma surpresa, lhe dizer que comemoraríamos nossos 3 anos em alto mar com tudo pago!
– Você fez tudo isso por causa de uma PORRA de viagem?
– F-foi, mas por que está…?
– Não passou pela sua cabeça ridícula NENHUMA vez me pedir em casamento?! – Não posso conter as palavras que são cuspidas em sua cara como uma serra elétrica nas mãos do Jason.
– Lia, eu amo você. Eu faria tudo por você, estou muito feliz em nosso relacionamento…
– VOCÊ está muito feliz?! Mas que porra de felicidade é essa?! E EU, você acha que EU estou feliz?
– Eu não estou te entendendo…
– Como eu posso estar feliz se estou há TRÊS anos com alguém – levanto-me da mesa e aponto os três dedos em sua cara de pau – e essa pessoa não pensou NENHUMA vez sequer em me pedir em casamento?!
– Eu só acho que ainda é cedo…
– Você acha o quê?! CEDO?! Eu estou te aguentando há três anos com essa sua babação de ovo medíocre, essa tua mania de se meter em tudo da minha vida, esse teu ciúmes doentio, esse teu bafo de galo morto pela manhã, esse teu bucho de cervejeiro sedentário…
– Ei! Você não precisa me ofender… Pare com isso, Lia…
– E tudo isso pra que?! PRA QUE?! Tento ser a melhor namorada do mundo e isso PRA QUE? Pra ter a surpresa de um dia especial e ser pedida em casamento! É pedir muito, afinal, Pedro? Isso é pedir muito, por acaso?! Será que você não podia UMA vez na vida demonstrar o mínimo de consideração COMIGO?
– Me desculpe, eu… Na verdade, não sei o que dizer.
– Aí você me vem com essa droga de viagem em um navio pra me causar mais vertigem e eu ter que aturar seus colegas da firma bêbados e insuportáveis por sete dias completos! Faço uma aposta! – Dessa vez, eu o interrompo. Estou gesticulando e falando alto, não consigo me conter. Vou culpar o vinho.
– Lia, por favor… Eu…pare! – ele abana as mãos em súplica.
– E você sabe o que mais, Pedro? É você que perde por não me pedir, você tá me entendendo? Você teria uma esposa linda e eu teria que aguentar um careca fanfarrão como você pelo resto da minha vida!
– Mas… o que isso significa, afinal?
– Significa que eu estou farta! Eu cansei! Eu não me casaria com você nem por um decreto! MAS EU MERECERIA A PORRA DE UM PEDIDO! Era tudo que eu queria! – começo a chorar impiedosamente borrando toda minha maquiagem.
– Eu… Eu sinto muito. Eu acho.
– Sente muito mesmo. Sente muito, sim! Porque você não me merece, Pedro. Nunca mereceu. Estou indo embora. Daqui, da sua vida. DE TUDO! – Viro-me e em passos largos caminho em direção à porta.
– Mas Lia, a gente pode dar um jeito. Não sei, a gente pode conversar direito. Por favor, espere! – Lá vem ele me seguindo e tentando alcançar meu braço antes que eu roube o guardanapo da mesa de mais alguém.
– CHEGA! Não toque em mim! Eu estou indo embora pra sempre. Eu não vou ficar nem mais um minuto com alguém que não teve a dignidade de me pedir em casamento depois de três anos juntos, sendo com certeza, o perdedor de nós dois! Eu seria teu troféu! Eu poderia ser se eu quisesse! Que você aprenda a dar o valor que uma mulher merece, seu idiota escroto. Adeus, Pedro Jorge.