Ela era diferente, tinha o sal que faltava nas doces mulheres ao seu redor. Mas de doce entendia bem: do chocolate ao lisérgico. No entanto, não havia ácido lhe fizesse enxergar o mundo tão colorido, tão distorcido, quanto amor que lhe corroía o peito. Era dessas que amam demais: pessoas, lugares, recortes de revistas, casquinhas de sorvete. Empunhava suas lembranças na cronologia do pecado; gostava de alinhar seus erros, nutrir suas dores. Não seguia adiante sem antes mergulhar na saudade, satisfazer suas fantasias de finais felizes.
Não acreditava em predestinação; aprendeu a criar suas próprias histórias. Por vezes, mentirosas, exageradas. Por vezes, desventuras que retratavam seus traumas. Não temia o preconceito, nem mesmo as cicatrizes que marcaram sua alma mais do que sua pele. Tinha essa sede pelo o que ainda não tinha vivido, essa fissura por quem nunca tinha conhecido. Vivia em guerra com o tempo que sequer havia perdido, pois amedrontava-lhe o futuro que lhe valesse mais que um minuto. Abdicou de seu passado pela pressa com que o presente passava. Não tinha tempo pra voltar atrás.
Não se importava se a chuva que lhe borrasse a maquiagem lavasse a áurea. Gostava desse estado de excitação de quando as máscaras caem, o salto quebra, a calça rasga. Nada era tão ruim que não pudesse contar de uma forma engraçada – ou inventada. Nem de longe tinha a ressaca como inimiga, na verdade, era uma grande aliada. Sabia que sua presença significava ter mais pra comemorar do que se lamentar. Aliás, não se permitia lamentar sobre nada. Cortava suas próprias asas antes que alguém o fizesse, não precisava dessa expectativa contida no desejo. Se queria que algo acontecesse, lutava por ele e, logo em seguida, abria mão de tê-lo. Era simples. Já havia entendido que não podia controlar nada, quem dirá, tudo.
Só lhe pertencia aquilo que pudesse carregar nas mãos e no peito. Não se questionava sobre a necessidade de ter as coisas, mas sobre o peso que teriam pra si. Trazia nas costas o fardo de uma vida que não cabia em malas. Mudava de cidade com frequência, comprava passagens só de ida, embora não tivesse qualquer receio em voltar. Sentia-se tão livre que não tinha nenhum apego a ideia de seguir em frente. Ela rodopiava, saltitava, afundava e se erguia. Em frente seria monótono demais. Enfrente, não. Era disso que ela gostava; do desafio, do medo, das pernas bambas. O frio na barriga sempre era um bom presságio que dizia “bem vinda ao novo!”. Adorava o novo, o inesperado. Tudo que fosse velho guardava no fundo da gaveta junto as cartas e os amores.
Seu prato preferido era aquele que acabara de experimentar, seu lugar favorito aquele que acabara de visitar. Seu amor pra vida toda, bom, aquele que acabara de deixar. Amava porque o deixava, se o tivesse provavelmente seria apenas apaixonada. E a paixão não lhe valia a pena; era pouca, passageira. Não nutria essa dependência de ninguém, nem de si mesma. Já se perdeu e se deixou por tantas vezes quanto pôde renascer. Acreditava cegamente nisso: podia ser quem quisesse, portanto seria ela mesma sempre.
Vivia na corda bamba, entre a genialidade e a loucura. Não gostava do morno, do médio, do meio. Incitava discussões, fazia questão de ser do contra. Queria mesmo o confronto, sentir-se viva. Sentir-se. Buscava dentre tantos sentimentos um que lhe servisse pra alguma coisa, mas só encontrava no sorriso a paz que precisava e no travesseiro, o consolo que lhe entendia. Sozinha e sempre rodeada de gente. Se via pronta pra viver seu maior deleite ou morrer em seu pior pecado. Era tudo ou nada, mas era sempre algo. E se qualquer mágoa ou rancor viessem à torna, entornava-os com água ardente. Sentia-os descer lhe queimando o estômago, lhe deixando tonta. Não parava até reproduzi-los em uma gargalhada histérica, sinal de que já não sentia mais nada, nem mesmo dor.
Já ouviu muita coisa a seu respeito, a ponto de aprender a não escutar mais nada. Preocupada com os outros, definitivamente, não era. Inclusive, no mal sentido. Não aprendeu a se importar tanto com quem merecesse. Não se via com tempo pra se perder nas entrelinhas de quem não estivesse disposto a viver na exclamação. Ela era diferente, tinha o sal que faltava nas doces mulheres ao seu redor. Virava o mundo como tequila na sede de se conhecer andando só. Ela era dela.
Muito bom! Entendo bem essa garota do texto. Personagem apenas, ou ela de verdade.