Lá vem ela em passos arrastados. Nas costas tomba o peso da chegada. Ela se curva para apanhar a bagagem feita de saudade com ambas as mãos e aperta-lhe contra o peito. Não vai voltar, não tem jeito, e ela sabe disso. Em uma coluna reluzente, ainda na sala de espera do aeroporto, vê sua imagem refletida: turva, distorcida. Definitivamente, quem ela é agora. Despede-se de quem foi sem olhar para trás. Mais uma vez, como se fosse a primeira vez. Tudo está diferente de uma forma que parece até inofensiva, exceto pelo gosto amargo na boca de sua língua mordida. Já havia pago por a seus pecados tanto quanto valeriam seus sonhos. Estava limpa, estava leve.
Foi embora porque, uma vez, lhe disseram que só devia sair da casa dos seus pais se tivesse certeza que se daria bem. Abominava a ideia do certo, o correto. Não queria ter certeza alguma, não pedia por ela. A certeza lhe paralisava, lhe irritava, lhe dava a falsa sensação de que chegara ao topo e que o mundo era somente aquilo que tinha ao seu redor. Ela queria as borboletas no estômago, o frio na espinha, a garganta seca. Foi embora porque não era todo dia que lhe diziam que você devia se conformar com o que tivesse e seguir pelo caminho mais seguro.
Talvez nunca mais sinta-se em casa, uma vez que se encontra em cada coração que fez morada. Não pertencia a lugar nenhum, mas em todos, quando partia, também se deixava. Perdeu a inocência de cultivar raízes, mas não sua essência de defender amores. Descobriu que podia amar a quem quisesse, da forma que bem entendesse, contanto que não temesse o fim, já que cada recomeço era consequência de um ponto final. E ainda quando não tinha nada a ganhar, era bem mais que o resto. Era a coragem em protesto.
Ela gostava dos seus erros, de aprender com seus arrependimentos, gostava do risco, gostava do medo. Definitivamente, gostava do medo. Nasceu inconformada, incomodada. Sempre insatisfeita. Defeito visto por uns, motivação visto por ela. Agarrava o corpo inteiro de uma mão que lhe era estendida, juntava o troco dos beijos para distribuir carinho a quem precisasse. Não queria nada em troca. Fazia o melhor que podia para maquiar suas cicatrizes mesmo que sempre expusesse sua cara à tapa.
Decidiu procurar o que fizesse seu coração vibrar, sua veia pulsar. Queria se entorpecer de adrenalina, se perder em dopamina e adormecer como menina. Perdeu o emprego, as horas, algum dinheiro e por que não dizer, a cabeça? Levou consigo a vontade de tentar. Não queria o peso do que não pudesse carregar no peito. Ser feliz. Ser livre. Ser, e não apenas existir. Trancou os medos no armário, se desfez da cara amarrada, se despiu de corpo cansado, se perdeu no seu pecado. Qualquer sucesso seria um grande triunfo e qualquer fracasso, aprendizado. Foi embora porque não tinha motivos para ficar, razão pra desistir ou receio em falhar.
Ali está ela outra vez. Cabelos desgrenhados de pontas claras, pele bronzeada de marcas firmes, mãos suadas de olhos abertos. Mochila nas costas, calo nos pés, rumo ao metrô e ao desconhecido. Ela peneirou o seu passado e semeou as lembranças na terra que chamara de mãe, de sua. Ela aprendeu a driblar a distância; o mundo inteiro lhe parecia uma cidade pequena. Ela fez o melhor que pôde com o delineador. Mas ainda anda em passos arrastados, não tem pressa ou planos. Ela está numa busca que ninguém pode encontrar por ela.