Assento próximo à janela, testa encostada ao vidro, fones de ouvido que lhe distanciam da realidade. Nas mãos um livro que mais se parece um amuleto pela força com a qual o segura e o batom vermelho inconfundível: é ela. A pele marcada de histórias expõe cicatrizes que o tempo não foi capaz de esconder, o cabelo desgrenhado acentua sua liberdade de ser; ela não tem vergonha de si.
Planejou muitas coisas que nunca aconteceram e sobreviveu a tantas outras que pensou que não fosse conseguir. Nem sempre fez as melhores escolhas, mas aprendeu que plenitude era saber lidar com as consequências, e não evitá-las. Tinha essa coragem estampada na ponta da língua pronta pra dizer “sim”. Tinha esse medo enjaulado no peito, e quando ninguém podia ver no meio da noite soltava-o, deixava-o expandir-se até cobrir cada centímetro que a rodeava, até que fosse só ela e ele numa guerra silenciosa de vontades listando um para o outro pelo que valia a pena lutar.
Já morou em uma mansão rodeada de gente e descobriu como ser invisível. Já dormiu em um quarto que mal lhe cabia uma cama e disputou o espaço com a solidão. Já dividiu hábitos familiares com completos estranhos e se reconheceu ao encontrar desconhecidos. Aprendeu que lar não era um lugar, era uma questão de sintonia. Estava em casa onde se sentisse em paz; debaixo das cobertas ou dentro do mar. Não precisava de mais nada, trazia no peito a bagagem de uma vida inteira.
Foi invadida por uma onda de afeto que desembocou em cada projeto que se envolveu. Fez piada de sua própria desgraça, fez da queda um recomeço, fez da saudade passatempo e dos erros aprendizado. Se desfez em lágrimas inúmeras vezes e se refez em esperança com o tempo. Ela faz acontecer, disso ninguém duvida.
Subestimou o amor até os 25, quando descobriu que só duvidada porque não podia ver. Ou melhor, sentir. E quando o sentiu pôde perceber o quanto o orgulho lhe cegara; amar é sobre ser, e não ter. Não podia pedir, emprestar, nem trocar. Tudo que a vida trazia era resposta ao que ela fazia. Descobriu que havia tanto de si naqueles que amara que mesmo quem lhe partisse em milhares de pedaços teria, sobretudo, que aceitar que nenhum deles lhe pertencia. Ela era ótima com retalhos, se reconstruía por inteiro. Abraçava a saudade como uma mãe, buscava seu acalento nas madrugadas e sua proteção ao desviar de certos caminhos, mas não se rendia. Aprendeu a diferenciar o que valia o choro do que lhe causava alívio.
Assento próximo à janela, testa encostada ao vidro, ela fez o melhor que pôde com o batom. Está sempre indo ou voltando, uma metamorfose ambulante seguindo a direção de um coração, por vezes errante. Não tente segurar uma garota que viaja. Ninguém pode duvidar que ela é dona de si.