Quando eu era criança fui educada a duras penas pelo meu pai. Ele me punha para estudar xadrez, soroban (ábaco japonês utilizado para cálculo), inglês, me proibia de usar calculadora comum e sempre me presenteava com livros. Naquela época, obviamente, eu detestava. Como iria entender que trocar meu sábado de sol, minha manhã de domingo assistindo desenho, por uma série de problemas de raciocínio lógico, enfadonha lista de cálculos e um jogo do qual eu só perdia iriam me ajudar? A maior herança que ele me deixou foi a capacidade de pensar. E quando se foi, me salvou de uma vida nos conformes. Do padrão, do certo, do correto. Me expôs ao caos, tirou meu chão e, sem dúvidas, foi a melhor coisa que já me aconteceu.

Infelizmente, não fui alertada de que isso não era comum. “Essa garota vai te dar muito problema.”, ouvi a diretora do meu colégio dizer a minha mãe, um dia. Um dos muitos em que ela foi chamada porque eu havia confrontado o professor. Na quinta série, me lembro como se fosse hoje, tive a sala inteira contra mim porque relutei em aprovar que o papel de prostituta na semana das profissões do colégio fosse encenado. “Vocês vão fazer apologia à prostituição igualando elas a um médico que ele, sim, merece respeito.” Eles me disseram que era uma revolta sem causa, que eram só crianças e que não tinha problemas. Eles, que eu digo, foram meus professores. Meus superiores. Nunca me arrependi dessa discussão fracassada, nem de todas as vezes que tive que explicar o que apologia significava.

Conforme eu crescia, lia cada vez mais. De forma absurda e acelerada, me fazendo esquecer de comer e, principalmente, de ter amigos. Descrente que pudesse encontrar alguém pra debater sobre meus livros, me conformava com o fato de tê-los como um segredo. Na sétima série, juntei por um mês meu dinheiro do lanche para comprar um livro. No primeiro ano, fui flagrada pela minha professora de literatura, que eufórica perguntou meu nome, lendo Dostoiéviski na cantina. Desde então, fui piorando. Matrix era (e ainda é) meu filme favorito; a luta contra o sistema, a desvalorização do ser humano, questionamento sobre Deus e o universo. Aos 12 anos, me aprofundei sobre religiões. Estudava a bíblia, sublinhava os absurdo, escrevia numa folha de papel meus “porquês”. Não conseguia parar, frequentei centros espíritas, fui a cultos, indagava padres, pastores e missionários. Colecionava panfletos que diziam “Jesus morreu por você na cruz.” Me tornei uma obcecada e por anos isso me atormentou.

“Você é evangélico também? Ganhou mil pontos comigo por isso.” Ah, porque basta vocês terem a religião em comum, assim como, um mendigo que pede dinheiro no sinal e aquela mãe super saudável sentada na calçada com o filho no colo a pedir dinheiro em nome de deus, é realmente uma amostra de suas qualidades. Enquanto aquele cara trabalhador, honesto, que sempre lutou pra ter suas coisas e que, por ventura, não crer em um plano divino, naturalmente, não é alguém de sua confiança.

Decidi parar de confronto, me entregar às crenças e tudo que me aconteceu após isso, ainda me pergunto se foi loucura ou de fato um sinal divino. Mas não dá pra se enganar pra sempre; quem pensa, pensa. E cedo ou tarde se cobra respostas que não cabem em um “Porque sim, está na bíblia.” Voltei à estaca zero, mas dessa vez, desisti de entender. De denotar minhas vitórias a alguém que talvez nem exista, do falso agradecimento noturno por raivas durante o dia, do onipresente medo de pecar por uma punição subjugada. E, principalmente, de desnecessárias conversas com pessoas acéfalas.

E agora cheguei onde eu queria. Só tem dois tipos de pessoas que me leram até aqui: os que me detestam porque me julgam arrogante e os que me admiram porque me julgam arrogante. A questão é que pessoas limitadas intelectualmente sentem-se intimidadas quando encontram alguém que lhes responde mais do que um “é, tens razão.” Elas tem pressa em provar que seus fundamentos tem sentidos, ainda que disponham de incontáveis argumentos vazios, opiniões que terminam com “eu sinto isso” e redundantes erros de português. Elas não leem, não questionam e, francamente, não pensam porque não se importam. Pra elas, toda dúvida é perda de tempo. Alimentam-se do comodismo, do que vier de mão beijada, da ideia mastigada.

Aprendi o valor do meu silêncio diante de discussões que não me acrescentariam. Aprendi realmente a ser convincente ao dar respostas treinadas, similares as ditas em horóscopo, que basicamente se adequam à qualquer situação. Aprendi a contragosto a policiar minha inteligência pra que não me tornasse uma insuportável pseudo-intelectual. Aprendi também a conviver com narizes torcidos, olhares de soslaio e piadinhas de deboche quando, eventualmente, até mesmo sem querer, soltava algo do qual com muito custo havia aprendido. Papo de gente metida mesmo. Afinal, ninguém quer ouvir sobre as viagens que você fez, as línguas que aprendeu e a verdadeira situação do país mascarada por alguma tragédia familiar enaltecida pelo principal jornal.

Aprendi que ter uma tatuagem escrita “O senhor é minha luz” me abriria portas, faria com que eu fosse melhor recebida entre os mais fervorosos. E responder coisas do tipo “Se deus quiser. Tenha fé. Ponha na mão de Deus” me dariam alguma credibilidade na falsa esperança. Aprendi que eu deveria, sim, assistir Big brother porque isso me daria um assunto com desconhecidos e que, se eu desse sorte, engajaria em uma conversa em que eu pudesse ver mais do que um fantoche. Ensaiei desculpas prontas para dar no sábado à noite porque eu preferia, sinceramente, ficar em casa lendo do que ir pra balada. E isso não pode. Mas deixar de ir à festa porque agora adquiriu “hábitos saudáveis” – ou seja, está tomando bomba e não pode beber – é legal.

Aboli o preconceito às raças, o machismo que dita o papel da mulher e os deveres do homem no relacionamento de tal forma que nem sequer me preocupo em debater sobre isso. Sou inteligente demais pra ser mimada e me perder em discussões unilaterais. Não quero à todo custo provar meu ponto de vista pra quem nem tem um cujo qual defender. Coleciono, com muito prazer, odiadores, porque sejamos francos, ninguém odeia o certinho, o perfeito. Somente aqueles que te instigam a algo, te fazem perder a cabeça, o senso, as crenças, que fazem A diferença, merecem ser odiados. Então, se ao final desse texto sentir que precisa me xingar de todos os nomes, o faça. Você pode até não admitir, mas bem ou mal, eu te fiz pensar.

Sinceramente, tenho incabível orgulho da arrogância que carrego. Junto a ela escrevi minha história. Eu leio, eu estudo, eu pesquiso, eu vejo, eu toco. Eu não sinto, eu penso. E dito isso, não imponho qualquer opinião minha acerca de tabus a ninguém. A maior lição que de tudo isso eu tirei foi justamente essa: não impor. Os limitados não vão entender que, na verdade, o que lhes incomoda não é o meu interesse por coisas “diferentes”, mas a involuntária mania que tem de se taxarem como inferiores e sentirem-se humilhados por isso. Discutir assuntos adversos ao senso comum, ter opiniões concisas e respostas na ponta da língua é, então, ser esnobe. Porque, praticamente, lhe dão o direito de ostentar quando lhe roubam a liberdade de pensar. Mais vale três litros de vodka na mesa, do que um livro na estante.  Mais valem milhares de mãos rezando, do que duas trabalhando. Sociedade de papel, sorrisos plásticos. E você só mais um.

3 respostas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *