Sou artista plástica há treze anos; isso é mais da metade de toda minha vida. Eu pinto e desenho desde quando aprendi a segurar um lápis e hoje, como vocês sabem, escrevo porque não consigo viver longe da arte. Por isso, esse atentado ao jornal francês Charlie Hedbo, em especial, mexeu bastante comigo. Principalmente porque sou ateia, mas esse assunto já é um sobre o qual não falo muito a respeito. E por falar em respeito, esse é o meu verdadeiro motivo.

Se me perguntam porque eu não acredito só respondo “porque eu não preciso”. Antes de mais nada, quero salientar que o fato de eu não precisar se deve a minha própria formação de força, caráter e fé. O que quer dizer que, eu, Samantha, com vinte e três anos muito bem vividos, sei que não há espaço para deus, alá, maomé, jah e qualquer outra divindade na minha vida porque não sinto necessidade ou falta da mesma. Independentemente de qual situação conflituosa ou desastrosa eu esteja passando, eu simplesmente não me apego a nenhuma delas. Levanto a cabeça, faço um plano, traço metas e vou à luta. Mas isso não diz, em hipótese alguma, que essa MINHA forma de enxergar a vida é melhor ou pior do que de QUALQUER outra pessoa. Ou seja, o que eu tenho pra mim como funcional não quer dizer que seja o melhor pra você ou que eu sequer estou certa sobre isso. Aliás, para começo de conversa, isso de jeito nenhum se trata sobre certo e errado.

Agora vou explicar o que aconteceu.

Charlie Hedbo é um jornal satírico francês famoso por fazer críticas às religiões há mais de 10 anos. E, obviamente como acontece com qualquer veículo de comunicação que expressa uma opinião concisa – ainda mais tratando-se de um assunto que AINDA é um tabu – sempre sofreu ameaças. Inclusive, já havido sofrido outros ataques às suas instalações de radicais islamitas. E, mesmo assim, nunca pararam com as publicações que por meio de cartuns retratavam Maomé.

Se você é do tipo que se sentiu de alguma forma confortável com a situação, mesmo que jamais admita isso em voz alta – principalmente porque a moda é postar #jesuischarlie nas redes sociais – então, sinto dizer que você entendeu os fatos tanto quanto uma porta.

Sendo assim, vamos começar do princípio: o islamismo.

Os devotos da religião são chamados de muçulmanos e acreditam que Maomé foi o último profeta de Deus e que o Alcorão (e o Sunna) é a versão inalterada da revelação final de Deus. Mas também tem Abraão, Moisés e Jesus como profetas e os livros sagrados Torá, Salmos e Evangelho formam a coletânea de ensinamentos. Eles defendem o casamento de adultos e crianças, permitem a poligamia dando ao homem o direito de ter até quatro mulheres, acreditam no Juízo Final em que você seria julgado e punido por não seguir os Cinco Pilares do Islã (a fé, a oração, o crescimento, o jejum e a peregrinação), dentre outras crenças.

No Líbano, por exemplo, eles acreditam que as mulheres foram feitas para servir os homens e após o casamento elas perdem muito de seus direitos. Mas, na verdade, os preconceitos são culturais e não da própria religião que, assim como qualquer outra, prega ensinamentos e bondade e altruísmo. Mas você deve se lembrar deles de duas formas: através da novela O Clone ou da Al-Qaeda.

O problema são as pessoas. O problema sempre são as pessoas.

Então, em qualquer tipo de organização, sociedade etc, há aqueles radicais com interpretações extremistas. É por isso que quase metade da população muçulmana acredita que o Ocidente quer destruir o Islã. É por isso que se formam organizações terroristas, como a Al-Qaeda. É por isso que acontecem atentados que matam milhões de pessoas e tudo vira notícia. É por isso que a tevê se foca tanto no terrorismo; porque são atos justificados pela ideologia deles e repassados adiante. É como dizer que não há uma forma de detê-los e por isso o mundo inteiro DEVE teme-los, mesmo que apenas alguns países sejam diretamente afetados por eles. A prova disso foi a propagação de seus ideais e a nomeação de um outro líder após os americanos terem dado “um jeitinho” no Osama Bin Laden. É uma bomba relógio que explode de tempos em tempos, literalmente.

Pronto, se você não sabia nada, agora entende o básico.

Acontece que ao contrário do nosso precário jornalismo que visa seus próprios interesses e, não, o repasse imparcial das informações, há profissionais e jornais – ainda bem – que prezam pela importância da comunicação e liberdade de expressão, dentre eles, os cartunistas.

Mas humor negro sempre foi uma jogada perigosa; metade das pessoas que riem é julgada como maldosa e a outra metade simplesmente não entendeu. E pela religião islâmica é proibido representar figurativamente qualquer profeta. Eis o motivo do atentado: vingança. Sendo assim, três homens invadiram a sede do jornal Charlie Hedbo em Paris e assassinaram 12 pessoas, incluindo o diretor do jornal e dois cartunistas, e deixaram 11 pessoas feridas. Tudo isso entoado pelo grito de guerra “Deus é maior”.

Pisou no meu calo.

Primeiro por se tratar de um atentado à liberdade de expressão, à comunicação, ao direito individual de pensar e aos artistas desse ofício tão pouco valorizado. Segundo por se tratar de uma guerra por religião (mais uma vez) incentivando a disseminar o preconceito contra os islamistas que realmente seguem esse estilo de vida para fazer o bem – assim como as religiões devem ser, a propósito.

Sabe a fé? Ela existe pra mim de uma forma diferente do que existe pra você. Eu a sinto com a mesma intensidade, suponho, mas escolhi percorrer um caminho menos convencional porque ele me dá mais tranquilidade, estímulo e paz no coração. Ou seja, se você precisa de deus e sente necessidade de tê-lo, sente-se em paz quando vai a uma igreja, sente-se mais forte e esclarecido, não vejo PORQUE você deva sequer se questionar sobre a sua existência. Não se mexe em time que está ganhando. Mas a única verdade absoluta sobre o assunto é que não existe verdade absoluta. Para cada pessoa funciona de um jeito.

Isso é mais importante do que as duas mil pessoas que morreram em cinco dias de ataque à Nigéria? Isso é mais importante do que a condição sub-humana dos africanos? Isso é mais relevante para nós, brasileiros, do que a atual corrupção que despenca o país? Ou mais significativo para nós do que a manifestação do Passe Livre que também ocorreu essa semana com bem menos direito a manchete? Não. Afinal, foram só 12 mortos em um país de primeiro mundo, não é? Temos problemas maiores, não temos?

No entanto, se não fosse por essas pessoas que todos os dias, às vezes em tempo real, se arriscam, se expõe, se manifestam e entregam-lhe a notícia de mão beijada enquanto você toma seu café da manhã muito bem sentado no conforto e na segurança de sua casa, você SEQUER saberia sobre esses acontecimentos ao redor do mundo que fazem com que você sinta-se humanitário o suficiente para acusar a importância da notícia como sensacionalista.

Pode até que ser que isso não seja relevante pra você. Que você seja do tipo que só preocupa-se com o próprio umbigo e suas curtidas em fotos. E eu respeito que essa seja a sua opinião ou que se reserve ao direito de não ter opinião alguma. No entanto, a comunicação existe para te oferecer a chance de pensar a respeito de tudo e a arte existe pra tornar o pensamento, um sentimento. Arte toca, comove, e não pode ser calada. Não deve ser calada.

Então, essa não é uma pequena causa. Aliás, é a maior causa de todas. Essas pessoas que morreram brutalmente assassinada pela represália de mais uma ideologia religiosa, morreram pra que VOCÊ tivesse a chance de pensar, a liberdade de opinar. E se, por acaso, você acha que o desrespeito começou por parte do jornal ao confrontar a religião islâmica, você faz parte dessa cúpula de opressão contra o que for diferente de ti. E isso reflete em absolutamente todos os aspectos da sua vida. Em outras palavras, a liberdade de opinião defendida também lhe dá o direito de ser estúpido ao se expressar.

Mas respeito não pode ser ensinado como andar de bicicleta. Tem que ser praticado, dia após dia, em todo tipo de situação. Se você se torna muito convicto sobre suas verdades perde a capacidade de ouvir. Se você não puder ouvir o que lhe confronta também vai ficar cego. É uma reação em cadeia. Antes que você perceba, acaba por fazer parte dessa ditadura de informações que só podem ser repassadas se satisfazerem os interesses de alguém ou o que for politicamente correto. E não há NADA pior em uma sociedade do que tornar a informação politicamente correta.

Mas o que eu mais admiro de toda essa causa é porque foi incentivada pelo humor. Sabe, essa capacidade de brincar com nossas diferenças em escala mundial é algo que deveria ser aplaudida de pé e, não, condenada. Torço por um mundo em que a consciência seja propagada através do riso.

Um adendo: Je Suis Charlie significa Somos todos Charlie.

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