Uma coisa é certa, eu nunca vou conseguir me lembrar tão bem do dia que o conheci como aquele dia em que estava com meu vestido rodado, o verde, o cabelo preso em um coque alto, só dei uma volta na chave da porta, e o perdi. Era inverno e uma brisa serena envolvia a manhã, dando a sensação que até mesmo o clima pedia calma, e que o tempo pedia prosa. Às vezes, me pergunto se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse a chance de dizer-lhe tudo que ensaiei com tanto gosto por horas à fio no espelho. Ou se, sei lá, fosse verão. Mas esse é só mais um dos questionamentos que guardo embalado numa fita no fundo do meu baú de memórias. Quase póstumas, quase tolas, quase sãs. Essa é só mais uma dúvida das muitas que cultivei por anos quando dizia “sim” no lugar de “não”.

Sonhei com ele essa noite e todas essas lembranças vieram à tona tão vivas como se nunca tivessem deixado de existir. Mas deixaram. Na verdade, acho que parte de mim também deixou. Foram sete anos dedicados às suas histórias, seus dilemas. Já tínhamos passado daquela fase de companheirismo, estávamos em um grave nível de dependência. Sozinhos não nos decidíamos e juntos, discutíamos. É extremamente desgastante carregar o peso de duas vidas em uma costa só. Muita gente não sabe, não percebe, quando não, sequer se importa, de ter tanto de suas conquistas divididas que se parar pra pensar, não tem de fato o que comemorar. Deixei meus méritos se perderem em seus deslizes, meus sorrisos em seus abraços, meu sangue em suas veias, meu coração em suas mãos. E assim aos poucos também me deixei.

O fim não era surpresa, e eu vinha sentido algo que me deixava inquieta. Uma espécie de pressa me encorajando a tornar qualquer gota d’água tempestade. Eu já não aguentava mais me conformar com a linha tênue do comodismo. Não aguentava mais andar em passos firmes, acertar os pedidos, os presentes, os beijos. Eu queria mesmo a explosão, o errado, o não. Eu queria vibrar, pulsar, me espernear. Eu queria a única coisa que ele não podia me dar: a expectativa. Com ele nem as brigas me surpreendiam, tampouco seus elogios me entorpeciam. Com ele era certo, normal, quieto. Com ele era aquilo que algumas pessoas almejam pra vida toda, algo como um tédio infinito, ou a programação de domingo da tevê aberta. Imutável, insosso. À vezes, sentia inveja de casais que viviam na corda bamba, que tinham mais drama pra contar do que novela mexicana. Acho que eles se colocavam à prova de verdade, sabe? Se testavam. Não só daquela forma ensaiada pra determinar a paixão que tinham um pelo outro, mas de uma forma verdadeira, quase que inconsequente, em que assumiam riscos que talvez não pudessem controlar os danos. Isso me fascinava. O coração batendo forte, o medo, os olhos vidrados esperando qualquer sinal de resposta que pudesse por tudo à perder. Minha excitação sempre foi proveniente do caos. Eu gostava das prolixas conversas de acerto de contas, de fazer pazes, de lavar a roupa suja. Mas eu tinha alguém que me completava por ter se moldado aos meus trejeitos, se adaptado aos meus defeitos. Eu tinha aquele alguém que me conhecia melhor do que eu mesma, porque praticamente se via em mim, e que me fazia questionar se não era eu em outro corpo. Pegadinha de Deus, quem sabe. Alguém que não me deixava dúvidas. Eu sabia suas respostas, seus gostos. Conhecia suas crises, suas tramas. Na verdade, distinguir as diferenças é que se tornara um desafio. E isso era terrível. É abominável ter convicção de alguém, mais do que de si mesmo. Entretanto, eu era essa abominável criatura correta, que só atendia quando lhe chamassem de amor. Eu era terrível, e mal sabia.

No dito Dia Do Fim, posso dizer que foi a única vez em todos esses anos que, de fato, estive atônita. Não vou negar que ficar sem palavras, sem prever os movimentos foi ainda melhor do que eu imaginava. E por trás da tristeza que me abatia e da vontade desesperada que eu sentia de sair correndo, algo mais forte vibrava com a ânsia de ter assinado meu alvará de soltura. Foi um tipo de liberdade que eu nunca havia experimentado antes e, talvez, se o tivesse não saberia como me deleitar até com meus receios. Ser livre dessa forma é agonizante, é perder seu chão; um abismo da personalidade criada a dois que agora se forçaria a viver por um. Confesso que não reconheci isso da noite pro dia, aliás, sequer pude me reconhecer! Levei dias, dores e mágoas pra conseguir me desapegar da imagem que eu tinha de mim mesma, já que só me via com ele. Quer dizer, eu nunca havia pensado sozinha. Estado sozinha. Até em nossas brigas, dávamos uma trégua para decidir alguma coisa, ainda que fosse o que iríamos jantar. Tínhamos essa falsa sensação de segurança que nos dizia que podíamos passar por qualquer coisa ou que, simplesmente, já havíamos passado por tudo. Mas não havíamos mesmo. Nos achávamos invencíveis por colecionar vitórias que não encheriam uma prateleira de memórias. Conquistas que representavam a fraqueza de maus olhados, familiares preconceituosos e até interesses distintos, mas que não eram, nem de perto, capazes de abater o tempo. E eu estava prestes à descobrir que ter o tempo como aliado era uma dádiva, mas o ter como inimigo, não passava de uma mera consequência.

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12 de agosto de 2013

Será que eu tranquei a porta? Devo ter trancado.

Vejamos: chave? Ok. Guarda chuva? Ok. Porta? Merda. Por que sempre me esqueço de trancá-la? Mas eu tenho quase certeza que tranquei.

Se, por acaso, eu não tiver fechado só vou poder verificar às 18h. Muita coisa pode ter acontecido até lá. Posso ser roubada, podem roubar meu exemplar da Vogue novinho ou meus vinis! Preciso voltar em casa. Preciso voltar em casa! Vou voltar, é isso.

Merda. Vou me atrasar pro trabalho! Mariane, Mariane… cadê o número dela quando mais preciso? Rápido, rápido! Ateeeeende, criatura.

– Alô? Nani?

– Sara, cadê você? O Jorge já chegou, está na sala dele com aquela cara de poucos amigos…

– Ai meu deus, era só o que me faltava! Que tipo de pessoa consegue cumprir fielmente o horário em dias de chuva, me diz?

– Você sabe que o velho tem um sexto sentido, né? Falando nisso, você não sabe o que a Rita me contou!

– Mariane, foco! Estava indo para aí, mas acho que não tranquei a porta de casa.

– Ah, pelo amor de Deus, Sara! Põe uma daquelas fitinhas vermelhas no dedo, sabe? Quase todo dia é esse dilema…

– Eu sei, eu sei! Acontece que agora estou voltando, não tem mais jeito. Não vou deixar nenhum maníaco se aproveitar da minha insolência…

– Sara, o único maníaco que vai se aproveitar disso é o Jorge se eu continuar tendo que inventar milhões de desculpas para livrar seu pescoço!

– É a última vez, Nani, eu juro. Dessa vez, estou falando mais sério do que todas as outras, eu sinto que preciso ir em casa agora.

– Andou lendo seu horóscopo de novo, garota? Ora, eu sinto! Eu sinto é que você precisa ter mais responsabilidade. E já que vai se atrasar mesmo, me traz um cappuccino. Duplo. E duas rosquinhas…

– Nossa, começou a dieta com tudo, hein?

– Não enche, quem está te fazendo um favor aqui sou eu. Quer ouvir o babado da Rita ou não?

– Claro que quero, ué!

– Pois bem, a Tânia do marketing me contou que a viu… – Nani foi baixando o tom de voz até se tornar um ruído distante, no mesmo momento em que o pêndulo da sorte à porta da padaria soou em câmera lenta. Fiquei paralisada, uma onda de calor percorreu todo meu corpo, embora estivesse com os pés encharcados e o cabelo úmido. Uma pontada fina me acertou em cheio, não no coração, mas na alma. Tão fundo que mal pude sentir minhas pernas, meus passos.

Leo estava na padaria. Acompanhado. Leo estava na padaria acompanhado. A três metros de mim estava acompanhado na padaria. A três metros de mim sorria e tocava com doçura no braço de uma mulher. Uma mulher que não era eu. Uma mulher que eu nunca vi. Na minha padaria, na nossa padaria. A três metros de mim, a vinte metros da minha casa, da nossa casa. Estava Leo acompanhado por uma mulher que não era eu. Esbanjando um brilho que nunca foi meu, uma risada leve. Uma risada livre, tão diferente dos seus ensaiados sorrisos amarelos.

– Sara? Sara, você me ouviu? Ainda está aí? Alô?

– Eu…eu, ele… – As palavras não saiam como eu queria, aliás, de forma alguma saíam. O tilintar do pêndulo tornou-se estridente, agressivo. Maldito pêndulo da sorte que parecia zombar de mim. Maldita garçonete que os servia e parecia zombar de mim. Maldita padaria a vinte metros da minha casa que também zombava de mim!

– Sara, você está me preocupando. Se isso for mais uma das suas brincadeiras de mal gosto, eu juro que…

– Leo… o Leo…

– Leo?! Mas que diabos?! Onde você está, Sara? O que o Leo tem a ver?

– Eu estou na padaria. – Consegui dizer por fim, engolindo em seco o espanto. – O Leo está na padaria. – Fui perdendo a segurança na voz e prendendo o ar, e o pranto. – Mas não estou com ele. Ele está com outra mulher.

– O QUÊ?! Mas, como assim? Quem é essazinha…?!

– O Leo está na padaria, Nani. Na nossa padaria, na esquina de casa. – Interrompo-a porque, sinceramente, sequer consigo ouvi-la. Preciso dizer em voz alta para acreditar, preciso dizer em voz alta pra me ouvir. – Eu estou na padaria a três metros dele. Ele está com outra mulher. Na nossa padaria. A garçonete está zombando de mim, o pêndulo da sorte está zombando de mim. Ela também gosta de sonho de doce de leite. – Não consigo parar de falar. – Nani, o pior… o pior não é essa mulher, nem a nossa padaria… Nani, ele parece… – engasgo em cada letra para admitir – feliz.

– Sara?! Mas… o que? Olha, eu… por favor! – Ele me nota. Ele finalmente me nota. Mas faz cerca de sete minutos que estou aqui parada. Ou sete anos. Faz sete anos que eu estou aqui parada olhando pra ele. E quando ele me nota e eu percebo que nunca o vi assim. Há sete anos eu também não tinha o notado.

Ele se levanta derrubando o copo de café na mesa, e pede desculpas a ela. Ele pediu desculpas a ela por ter derrubado o copo de café na mesa e acidentalmente molhado a ponta do seu guardanapo que nem sequer havia sido tocado. E eu estava vendo. Vem em minha direção com as mãos abanando, acho que temendo que eu dê um escândalo. Mas não vou dar. Eu não vou dar esse escândalo, Leo. Você não merece esse escândalo. Continuo imóvel com o celular na mão e ouço uns ruídos saindo dele cada vez mais altos. Mariane. Desligo por impulso. Mas ainda estou aqui parada.

– Olha, Sara… eu posso explicar. Vamos conversar em outro lugar. Vamos em casa… – seu olhar está trêmulo, suas sobrancelhas curvadas. Conheço sua cara de coitadinho, mas dessa vez não é isso. Dessa vez não.

– São por encomenda.

– O.. O que?! Sara, por favor, vamos conversar em casa…Eu…

– Os sonhos. Os sonhos de doce de leite são por encomenda, Leo. Você sabe.

– Sim, sim, eu sei… Mas o que..?!

– Três meses?

– Sara, eu te imploro…

– Agora percebo que nunca foram pra mim.

– Eu… Eu posso explicar, Sara.

Dou meia volta em direção a porta, e Leo me segura pelo braço, não da forma delicada que tocava nela, mas de uma forma bruta, forçada. Nitidamente pior pra ele do que pra mim. Ele me segurava porque devia e, não, porque queria. Gesto provavelmente tirado de alguma comédia romântica que viria muito bem a calhar com essa manhã chuvosa.

– Você já me segurou por sete anos, Leo. Me deixe ir.

Sem tirar os olhos dos meus, ele soltou meu braço. E eu saí pela porta da padaria ignorando o histerismo do pêndulo em anunciar minha derrota. Ignorando os olhares dos conhecidos de esquina em expor minha vergonha. Ignorando a lembrança de mim mesma paralisada de forma patética à porta da padaria. Mas não era da situação em si, não era do flagra que eu me envergonhava. Era de nunca ter visto o que agora se fazia óbvio. Tinha vergonha de nunca ter sentido tamanha paixão pra justificar tanta loucura. Tinha vergonha dos anos que teci à fino trato em uma teia de mentiras. Tinha vergonha pelo peso do tempo que carreguei minha ignorância, meu comodismo. Tinha vergonha de estar, embora não quisesse admitir, mais feliz do que ele por finalmente ter me dado o fim.

 

Continua…

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