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Eu já fui como você, já tive certeza que amor tinha um andado torto, cabelos castanhos e olhos pequenos. Que quando se concentra faz bico e debocha da minha sanidade sem se dar conta. Que o som da sua risada era capaz de me arrepiar os pelos do braço em uma onda de ansiedade e alívio. Que quando nossa respiração se sincronizava no meio da noite, as engrenagens do mundo se encaixavam e passavam a funcionar. Eu tinha a impressão de que tudo naquele momento se harmonizava em uma espécie de sinfonia astral, e aquele era meu porto seguro. Às vezes, até abria os olhos para ter certeza que meu melhor sonho era estar acordada ao seu lado.

Eu já fui como você e acreditei em sintonia ou que havia algo a mais por trás de quem lhe fazia perder a fala além da expectativa que vinha guardando no peito. Já desviei de conversas que não dissessem o que eu queria ouvir e de pessoas que não ouvissem o que eu queria dizer. Já construí um sentimento tão meu que achei que fosse eu por inteiro. Ledo engano, eu sou muito mais do que os vários pedacinhos em que me desfiz. Muito mais do que partes soldadas de memórias frágeis. Mas assim como você, eu acreditava que a possibilidade de ser exceção à regra compensaria, e a cada nova chance jurava ser a última. Eu já fui como você e eu já fui esperança também.

Às vezes é preciso se dar uma colher de chá, ter ciência da leviandade das suas escolhas e mesmo assim fazê-las só por desencargo de consciência, entende? Não dá pra viver com aquele embrulho no estômago das inúmeras vezes que se perguntou se podia ser diferente. Eu já fui como você e senti um medo desgovernado de que tudo desse errado. Já senti uma vontade crescente de seguir pelo caminho mais seguro, me afastar enquanto ainda havia tempo. No entanto, assim como você, eu não consegui; minhas pernas colaram-se ao chão mesmo em constante turbulência. Havia algo de extraordinário no calafrio que me dava sempre que eu pensava o quão ruim aquilo ia ficar. Havia algo por trás do fracasso que fazia cada tentativa valer a pena. Não posso dizer que descobri o que seja porque, assim como você, eu contínuo seguindo os ímpetos do meu coração, dando corda para suas palpitações sem pensar duas vezes. Eu já fui intensa também.

Eu já fui como você e sei que isso vai passar. Mais de uma vez. Ele não foi o único, nem você. No fundo, ele também é como você, e só está à procura de alguém que entenda o que ele sente. Ou que o faça sentir mais do que pode entender. Eu já pensei que pudesse ser esse estímulo para alguém, e não pude. Já achei que tivesse as respostas a todas aflições, quando ainda sequer entendia o valor da dúvida. Eu já subestimei o tempo diante da força de uma paixão até perceber que eu estava lutando contra ele ao invés de deixa-lo me levar. Eu já soprei forte a esperança a fim de impulsionar as velas de outro peito, e me frustrei ao notar que não saíam do lugar por mim. Assim como você, eu também me senti cansada e desisti, mesmo em segredo acreditando que desse jeito o destino o traria de volta. Eu também já fui ilusão.

Eu já fui como você e descobri que amor é na verdade absurdamente expansivo, toma a forma e o corpo de quem o possui. Absorve o cheiro e o medo de quem o exala. Não tem exatidão nenhuma porque para cada um significa uma troca de olhares diferente. Sinceramente, assim como você, nós não nos damos muito bem, mas não conseguimos sair da vida um do outro. Uma hora você aceita que de tanto se esbarrarem por aí não dá pra fugir dele, nem evita-lo. Você até aprende a gostar da expectativa de quem será o próximo atingido. Porque sempre há uma próxima vez, acredite. Eu já fui como você, sei como é isso. Depois de um tempo, a gente se torna mais seletiva: ou nos ama por inteiro ou não nos vale nem um pedaço.

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